segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Criadores

O Monte Olimpo, que normalmente apresentava uma temperatura agradável e o céu limpo e ensolarado como uma manhã primaveril, experimentou um momento de nuvens gélidas e vento uivante. Era a inesperada presença de Hades, Senhor do Submundo, que chegava ao Palácio do Olimpo com um curioso ar de urgência, subindo sei hesitar as escadas que o levavam aos jardins e ao grande portão. Na entrada, depara-se com Ganimedes, que faz uma reverência e oferece a ele uma taça de néctar.
- Não. Preciso falar com Zeus. Podia fazer a gentileza de me levar até seu gabinete?
- O senhor tem hora marcada?
- Mas é claro. Ontem mesmo lhe enviei um e-mail solicitando esta audiência.
- Pelo elmo de mercúrio! Como pude eu não ter sido informado desta ilustre visita.
- E nem era preciso. Meu assunto com ele é particular e não vai tomar muito tempo, então não será necessário fazer cerimônia para que eu seja recebido.
- Por aqui, por favor. Siga-me até o elevador.
Ganimedes acompanhava Hades no percurso daquele imenso corredor forrado de tapete e adornado com estátuas de ouro. Da metade da parede até o teto, grandes aberturas em forma de arcos permitiam a entrada da luz solar, assim como a circulação do ar. O teto daquele largo e infindável corredor era coberto por pinturas clássicas, que contavam as histórias dos moradores daquele palácio.
- Diga-me, onde se encontram os outros deuses? O palácio está tão vazio.
- Estão naturalmente todos ocupados com seus ofícios, metendo as fuças na vida dos mortais.
- Muito bem, fico contente ao saber que não são todos que se desvirtuam de suas funções.
- Desculpe-me, mas o que o senhor quis dizer com isso?
- Esqueça.
Após uma longa caminhada, chegaram finalmente à porta do elevador. Ganimedes apertou o décimo segundo andar, e pediu para que Hades entrasse. Logo depois ele informou que o gabinete ficava na primeira e única porta avistada na saída do elevador, atravessando um hall.
- Obrigado. - agradeceu o Deus dos mortos.
Ao ouvir o toque de chegada ao último andar, as portas se abriram e ele não teve dúvidas: lá estava o escritório do Deus dos raios. Subiu uma escadas e já sentia os raios de sol penetrarem sua visão. O gabinete, na verdade, era um espaço aberto, que ficava na cobertura do Palácio. Um enorme salão retangular ladeado por colunas jônicas,em  cujo interior não havia nada. No final, após andar uns cinquenta passos, uma escada de porte médio levava a uma gigante poltrona de ouro adornada com uma águia, também dourada.
Com aparência de ancião e físico de um jovem guerreiro, Zeus ostentava uma barba e cabelos abundantes, apesar de grisalhos. Ao seu lado, uma jovem sentada em suas coxas sussurrava algumas palavras.  Ao ouvir um pigarro vindo de baixo, o filho mais novo de Chronos tentou logo se recompor, afastando-se gentilmente da jovem e se levantando da poltrona dourada.
- Pelas barbas de Netuno! O que diabos estás fazendo aqui em cima, meu irmão?
- Saudações. Venho para tratar de negócios. Da família, naturalmente.
Zeus sussurra alguma ordem nos ouvidos da bela jovem, que faz um sinal positivo com a cabeça, como se concordasse, e logo informa que estará no mesmo jardim de sempre, com o iphone ligado, esperando sua visita.
- Oh sim, sim. Qual é mesmo o jardim? o das acácias?
- Não. Este deve ser com outra jovem. O nosso é o das azaléias.
- Claro! Como pude me esquecer!
Com um movimento sensual, a jovem sorri discretamente para Hades, como se estivesse se despedindo, e caminha até a saída. Assim como Zeus, o deus dos mortos acompanha seus movimentos, principalmente observando suas fartas e jovens nádegas. Zeus sorri para o irmão:
- Uma gracinha a Polímnia, não acha?
- Sim, sim. Nossa irmã deve estar realmente satisfeita com o casamento de vocês. - comentou ironicamente.
- Hera não tem do que reclamar... Mas você não viajou tantos espaços para falar de mulheres, não é mesmo?
- Não. Vim falar do seu filho, o meu sobrinho Ares.
- Pois então, fale. O que lhe aflige no rapaz?
- Serei lacônico: você sabe que na Terra dos Mortos também existem leis e regras. Por exemplo, não podemos admitir o tempo todo espíritos bons que morrem de morte morrida, como se diz no nordeste brasileiro. Existe um limite para isso. Também precisamos de almas que morreram de morte matada e outras tragédias. As vagas precisam ser preenchidas.
- Não consigo entender onde o irmão quer chegar.
- Vou direto ao ponto: nos últimos dias, Tanatos, o mensageiro da morte, praticamente não tem me trazido soldados mortos, nem acidentes de trânsito ou assassinato com requintes de crueldade. Todas estas vagas precisam ser preenchidas para que o Inferno funcione como deve! E onde está Ares numa hora dessas que não cumpre com seus deveres? está ocupado com campeonatos esportivos e relações extraconjugais. Ele é o Deus da guerra, o responsável pela violência e pelos acidentes.Você precisa dar uma regulagem no seu filho, pois é o chefe do Olimpo e precisa manter a ordem e o equilíbrio das relações. Sem tragédias no mundo dos vivos, o Outro Lado será gravemente afetado, o que pode provocar um verdadeiro descompasso e gerar caos no Céu e na Terra.
- Tens razão, prezado irmão. Falarei hoje mesmo com o moleque. Acho que um ataque terrorista nos EUA e uns tapinhas ali na Faixa de Gaza deve resolver seu problema com a falta de pessoal.
- Espero que sim. Mas não adianta fazer isto uma vez, tem que ser regularmente. E ele não deve esquecer que acidentes, guerras e ataques é muito bom para resolver um problema de urgência, pois arrecada mais almas de uma só vez, no entanto, existem cargos no Submundo que só aceitam vítimas de crimes passionais, o que é mais trabalhoso, porém essencial. Peço que ressalte isto para ele.
Ao dizer estas palavras, Hades teve um súbito devaneio. Ele estava na Baixa Idade Média, há séculos atrás, visitando a Terra com seu mensageiro Tanatos. Olhava aquelas vastas pradarias de algum lugar da Ásia, Europa ou África, e facava encantado com o tamanho das terras. O Inferno fazia aniversário. Era uma época comemorativa. Passavam anos comemorando. Ele prometeu a Tanatos que aquela época seria inesquecível para o Submundo e também para todos os outros mundos. Um rato preto atravessava seu caminho, então ele teve a ideia de apanhar o animal e falar-lhe:
- Ouça, amigo, preciso que você mande uma mensagem para os humanos. Esta mensagem vai incomodar um pouco, fará mal a você e aos seus semelhantes, mas prometo um lugar de privilégio no Submundo, se fizer tudo direito. Eis a mensagem.
Hades tirou do bolso um frasco de vidro contendo duas pulgas, portadoras da bactéria yersínia pestis; uma macho e outra fêmea. Abriu o frasco e libertou o casal de artrópodes nos pelos do animal.
- Não se preocupe com a quantidade- disse- elas vão se reproduzir. A mensagem chegará a todos.
Foi uma festa no Mundo dos Mortos. Nunca se vira as alma chegarem com tanta rapidez, e em tanta quantidade. A Peste chegou a mandar tantas almas que não houve tempo para elas serem substituídas na Terra. Zeus chegou a ficar furioso com Hades, pensando que os mortais poderiam perder a fé e parar de venerá-lo, mas enfim entendeu que se tratava de uma época especial, uma comemoração. Bons tempos aqueles.
Após o rápido devaneio, o Deus dos Mortos retorna a si com a chamada do irmão:
- Está me ouvindo?
-Como?! Desculpe, pode continuar...
- Não se preocupe, tudo será feito. Você verá, afinal, nunca deixei um irmão persistir numa situação como esta. - dizia, abraçando-o levemente pelas costas e o conduzindo à saída do gabinete.
- Fico muito grato pela disponibilidade. Até algum dia.
- Até. Mande lembranças para Perséfone!
Ao voltar para o Inferno, Hades já sentia a diferença do ar, para ele, mais familiar do que aquele do Olimpo. O Inferno era um local naturalmente escuro, iluminado por tochas, o que tornava o local quente, abafado e impregnado de fumaça. Ali não batia nem vento, nem sol, tornando o clima muito desagradável. Nos Campos Elísios era diferente, pois este lugar estava adaptado para os seus hóspedes, pessoas acostumadas com o clima da superfície. Hades habituara-se ao abafamento do Mundo Inferior, e não se sentia mais confortável em nenhum outro local.
Atravessando a sala de estar, encontrou sua esposa, Perséfone, sentada muna poltrona assistindo à televisão. Eram programas sobre a vida dos mortais. Hades não pôde deixar de comentar.
- Perséfone, minha bela Perséfone. Não cansa destas novelas? os mortais são todos iguais, o enredo não muda nunca. - sentou-se ao lado dela.
- Meu Senhor, estou emocionada com as histórias de alguns dos nossos futuros hóspedes. São terríveis.
- Não diga isto, minha querida Perséfone. Você sabe muito bem que cada mortal tem o que merece. Eles não aprendem nunca.
- Às vezes tenho dúvidas. Veja, por exemplo, o caso desta alma encomendada para amanhã. Chama-se Vítor Mainardi. Deixou o seu país para viver com a mulher que ama em um lugar tão distante quanto inóspito. Eles se amam, mas as diferenças são evidentes demais. Eles brigaram. Ele vai tomar o avião para voltar à sua terra. Vai morrer num acidente. Ela está arrependida, quer pedir desculpas, quer que ele fique. Ela está esperando um filho dele, mas não sabe se deve contar. Talvez ele fosse mais feliz num lugar com maiores oportunidades. Ele vai morrer sem saber que deixou um filho e sem saber que ela queria que ele ficasse. Por que tinha que ser ele?
Levantou com ímpeto e bateu na parede:
- Oras, como ousa?! Como ousa questionar os selecionados? Tanatos sabe muito bem da hora de cada um.
- Não se exalte, apenas fiz um comentário.
- Inoportuno. Você perde muito tempo com esses mortais. Sabe que os humanos são todos uns fracos e que merecem seus destinos. Vivem cada dia como se não fossem morrer nunca, como se tivessem toda a eternidade para escolher o melhor e encontrar a felicidade. O problema dos humanos é este: acham que podem controlar tudo, até mesmo seus destinos. Acumulam vícios, rancores, obsessões...passam a vida inteira querendo mudar o outro, e quando enfim perdem alguém querido, é que se dão conta de sua insignificância e passam a endeusar o defunto. "Nossa, como fui mesquinho, como fulano era bom, olha tudo o que ele fez por mim". O problema dos humanos é que eles não sabem viver o momento. Estão sempre preocupados com o passado e com o futuro. As pessoas acham que se livrando de um problema, tudo será maravilhoso e a felicidade virá, mas os problemas sempre existirão, serão substituídos por outros. Não tem como fugir deles. Tem que viver cada problema como se fosse uma bênção, uma oportunidade para crescer. Se esta moça que vai perder o amante realmente o tivesse amado, teria aceitado e encarado todos os problemas, não seria tão negativa e crítica com ele. Agora que vai perde-lo, o sentimento de culpa vai norteá-la pelo resto da vida. E o sentimento da perda vai se expressar nos próximos relacionamentos, assim como no relacionamento com o seu filho que está por vir. Ela será uma mãe sufocante e autofágica. Vai proteger tanto o filho de males imaginários, que ele vai crescer desconfiado, e além de tudo, associará o amor a perdas e autodestruição.
- Como você chegou a esta conclusão?
- Os humanos são previsíveis. Eu me aborreço.
- Ela podia ter contado a ele sobre a gravidez. Dessa forma, ele teria um motivo para não ir embora.
- Sim, é o que ela devia ter feito. Mas os humanos gostam de sofrer, gostam de um drama. Por isso, sempre damos a eles o que nos pedem.
- E o rapaz, por que morrer tão jovem?
- Porque ele é inconsequente. É o que acontece com pessoas assim, e mal afortunadas.
Hades acende uma vela com o dedo, coloca-a dentro de um castiçal no aparador do salão. Perséfone não se contém:
 - Você fala isso porque não é mortal. Tem plenos poderes, não precisa temer a morte. É difícil para os deuses entender o sofrimento dos homens.
Hades é tomado por um aceso de fúria:
- Por que me deixa furioso? Não percebe o que está dizendo? Por acaso pensa que é fácil ser um Deus? Você mesma sabe disso! Acha que é fácil ficar aprisionado pela eternidade exercendo uma única função que não escolheu? E ter que testemunhar pela eternidade toda a imbecilidade humana, a mediocridade deles, sempre os mesmos erros, apesar da evolução e de todo o controle sobre a natureza. O que é isso que nós temos? Uma vida? Será que vivemos? Temos ao menos a chance de escolher uma vida, para depois perde-la? Você realmente pensa que é  oitava maravilha ser o Deus do Submundo? Posso ter poderes, mas tenho que lidar diariamente com a morte e o sofrimento alheio. Acha que é fácil? Você é a prova de que tive até mesmo que sequestrar uma figura feminina para me casar com ela! Ninguém quer morar aqui embaixo!
- Tudo bem, tudo bem. Pode não ser fácil para você. Eu entendo. Talvez o Submundo não seja o Paraíso como o Olimpo, mas...
- Paraíso? Não existe Paraíso. Passar a eternidade bebendo néctar e comendo ambrosia não parece ter nada de estimulante. Viver numa temperatura sempre amena, num lugar onde se tem o que quer, com obras de arte, flores e jardins. Os Deuses do Olimpo vivem entediados. Eles não estão mais felizes do que nós!
Perséfone levanta, insatisfeita, e puxa o marido pelos ombros, implorando por alguma reposta.
- Então me diga, quem é o responsável? quem fez isso conosco? quem nos aprisionou para a eternidade nestas vidas?
- Não está claro para você? Foram eles, os humanos. Foram eles que nos criaram. Eles nos aprisionaram para dar sentido às suas vidas. E agora estamos aqui, fazendo tudo o que eles nos mandaram fazer. Eles dizem que controlamos suas vidas porque ficamos entediados e precisamos de alguma atividade. Talvez seja uma espécie de vingança.