quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Lendas soteropolitanas - Sonho provocado por episódio de South Park baseado em filme Madrugada dos Mortos trinta minutos antes de dormir

Descia as escadas de mármore, apressadamente, Leonor Machado. Era um pequeno prédio de construção antiga localizado no bairro da Graça, onde vivia com seu marido Filipo. Ela o esperava na garagem para tomar uma carona até o seu trabalho, que ficava na Praça da Sé. Aquela manhã de inverno setembrino estava um pouco fria, embora o sol brilhasse como um dia de primavera, pois os raios ultravioleta encontravam partículas tão pequenas na atmosfera para refratar a luz, que emitiam e dispersavam a cor azul turqueza, pelo pequeno comprimento de suas ondas, dando a impressão de uma fresca manhã primaveril. Leonor sabia que não era difícil chegar ao bairro onde trabalhava, e que poderia facilmente tomar um ônibus que a conduziria até lá em alguns minutos, deste modo não teria que esperar por Filipo todos os dias. Mas o percurso que ela faria era parte de um trecho do percurso de seu marido, de modo que a carona possibilitava economizar tanto dinheiro e tempo, como também vaga ou espaço no transporte público, em outras palavras: energia mundial ou quiçá universal (uma vez que os sistemas estão interligados). Era quase uma questão de preservação ambiental. Logo, por amor ao planeta Terra, ela teria que esperar, todas as manhãs, o paciente e vagaroso marido. 
Acontece que, no dia anterior, eles tinham discutido por uma bobalidade, e esta discussão tinha se tornado problemática para Felipo, que evitava a esposa para não ter que retomar o assunto. Ele informou que não a levaria para o trabalho naquele dia, e que ela poderia tomar alguma condução e chegar sozinha ao seu destino. Mesmo assim, Leonor o esperava, pois não admitia tal recusa. Ficou na porta da garagem, em pé, esperando.
Ao olhar impaciente para os lados, ajeitando seus cachos cor de mel, ela se surpreendeu ao notar um entra-e-sai numa papelaria defronte ao prédio. Lançando um olhar mais apurado, descobriu que o estabelecimento estava sendo assaltado, e quis sair daquele lugar o mais depressa possível. Atravessou a rua e tomou um ônibus. De repente pensou: "será que era feriado? por que o ônibus estava vazio? não, não teria erro. Era fácil demais chegar à Praça da Sé". Sentiu um pouco de frio, um arrepio na pele, e teve a ideia de tirar a jaqueta e o cachecol da bolsa para vestí-los.
Quando o ônibus parou na Avenida Sete, próximo à Praça da Piedade, ela sentiu a necessidade de sair para fazer a pé o resto do trajeto. O ponto ficava depois da Praça, ao lado de uma escola. No entanto, era costume os passageiros pedirem para que o motorista parasse um pouco antes, quando o sinal estava vermelho, próximo à Paróquia de São Pedro e à Faculdade de ciências econômicas. Ela achou que devia saltar e seguir em frente, mas parou para tomar um café no Café São Pedro. Ao tentar entrar no local, percebeu que o chão estava forrado de mendigos dormindoo. Sim, era cedo da manhã. Não devia ser mais do que sete horas. Mas já está claro o suficiente para esses mendigos acordarem, levantarem-se e batalharem pelo pão de cada dia, literalmente. Desistiu de entrar e desviou o caminho, procurando outro lugar para tomar o seu café. Ao atravessar a rua e chegar até a Praça, ficou surpresa ao notar que certos mendigos já estavam pegando no batente, mas não conseguia ver pessoas na rua, ou seja, os "clientes" ou "vítimas" dos profissionais da mendicância. Estava tudo ainda muito deserto, não fossem alguns transeuntes, que também pareciam ser todos moradores de rua. Atravessando o portão da Praça, viu algumas pessoas deitadas nos bancos, outras lavando roupa, algumas fazendo suas necessidades fisiológicas em cima de qualquer pedacinho de terra ou mato. Um senhor recolhia seus trapos e se agaslhava com eles, acendendo um cigarro, certamente para amenizar o frio causado pela brisa matinal. Pombos dançavam e gorgeavam em cima dos monumentos e até mesmo no chão, sempre alçando voo com a presença de passantes. Um odor de fezes de animal tomava aquele ambiente. Sem dúvida seria dos pombos, ou talvez dos cães que perambulavam por ali. Ao deixar a Praça para atravessar a rua Direita da piedade, avistou uma criança agachada, defecando em um pequeno buraco na calçada de pedra portuguesa que ficava defronte a praça. Buraco aberto, provavelmente, pela erosão e falta de manutenção daquelas calçadas. Apesar do horário, as ruas estavam vazias, mas a quantidade de mendigos que ela encontrava ia aumentando consideravelmente com o passar dos minutos. De onde estavam chegando todas aquelas crituras? E onde estavam as pessoas normais? Por um instante, parou. Andou um pouco até a Polícia Civil e olhou para a rua no sentido Politeama. Estavam vindo de lá. A rua, a praça, os edifícios, tudo estava sendo tomado pelos desabrigados. Não se via mais nada além deles. Ela sentiu um frio na espinha e quis fugir dali imediatamente: era a única pessoa naquele ambiente que tinha um abrigo para esquentar os ossos! E não entendia porque todos eles se destinavam àquele lugar e não se via uma pessoa com quem ela pudesse se comunicar. Era como se aquele ônibus a tivesse deixado numa terra estranha, povoada por seres alienígenas. Era notável como os desabrigados passavam por ela sem ao menos se darem conta da sua presença, como se ela não existisse. Por outro lado, pareciam interagir e se comunicar entre si, com uma linguagem própria. Notou o quanto era insignificante para aquela gente, uma vez que nenhum deles se dirigia a ela, nem para pedir algum trocado. O mais estranho é que, além de não conseguir enxergar ninguém que não fosse a população de mendigos, reparava que esta aumentava vertiginosamente em pouco tempo, vindos do Politeama, ou talvez dos Barris, ou de qualquer outro canto, de todos os lugares. Brotavam nas calçadas, na Praça e nos estabelecimentos, tomando as ruas como se fosse o Carnaval. Era isso que parecia, um carnaval de mendigos, não fosse pelo fato de que não havia música, nem som, nem dança ou qualquer outro ruído que pudesse manifestar uma passeata ou um ritual. Pareciam hordas de zumbis, alheios a tudo o que dizia respeito à sociedade e suas regras. Não caminhavam, não andavam, não corriam; eles perambulavam sem rumo. Não se preocupavam em interagir com aquilo que não pertencesse aos seus universos. Não davam a mínima para as placas, os sinais, os letreiros ou dizeres. Viviam como loucos no manicômio ou doentes num hospital, manifestando um comportamento depressivo e de completa alienação. Podiam dormir na calçada, nos bancos da praça, e fazer qualquer outra coisa no mesmo lugar. Não precisavam distinguir ou determinar um local para cada atividade, pois na verdade passavam o dia inteiro sem atividade, sem pespectivas, sem objetivos e tudo o que lhes restava era manter a (sobre)vida por meio da respiração e das funções fisiológicas, até o inevitavel dia da morte.
Um senhor cego, sentado nas escadarias do Convento da Piedade - Mater Pietatis, cantava uma canção desconhecida com uma voz velha, usada, entrecortada, porém com um fôlego admirável, talvez a única coisa que lhe restasse ainda como meio ou razão de se manter vivo. Ela tirou um trocado da bolsa e colocou ao lado dele, dentro de um chapéu preto. Na frente da Polícia Civil, uma menina fitava com tristeza e desalento a sua mãe que gemia doente, e de tanta dor e cansaço, deixou-se cai no chão, em cima de um trapo de lençol. Ela não podia fazer nada para ajudá-la, até porque a coitada sofria de problemas auditivos e não aprendera a se comunicar. Próximo a um salão de beleza, um artista arruinado tenta reviver seus momentos artísticos usando pedaços de papelão e tinta de parede velha como materiais para suas pinturas. Ela não entendeu muito bem o que ele estava tentando expressar naquelas obras. Talvez um encanto lhe surgisse: conseguia, afinal, ver qualquer vantagem na situação deles. Para os homens normais, era natural ter que dar conta de assuntos da vida alheia. Todos os dias, em casa, no trabalho, no bar, na padaria, ouve-se alguém formar uma opinião sobre tudo: sobre o jogo de futebol da noite anterior; sobre o crime misterioso que aconteceu a anos-luz de distância; sobre mais um caso de corrupção na política nacional; sobre como tal celebridade gasta seu dinheiro; sobre crianças que querem dormir em cama de casal; sobre pessoas que gostam de fumar; sobre o estilo de cada um se vestir; sobre orientação sexual; enfim, sobre a vida. Todo mundo tem uma visão de vida particular, mas querer expor cada opinião que se tem sobre coisas insignificantes que nos rodeiam, acaba por denunciar o quanto podemos ser intolerantes. A filosofia e a política devem ser usadas na medida certa. Talvez não ter opinião sobre como a colega do andar de cima se veste não mostre apenas um direcionamento de ideias para coisas mais significativas, como também o fato de que você é capaz de conviver com pessoas diferentes.
Aqueles desabrigados deviam conhecer, mais do que qualquer pessoa normal, o sofrimento, a dor, a pobreza, a tristeza, o desprezo, o desalento, a impotência, o desconforto, a insabubridade, a miséria (des)humana. Não estavam dentro nem fora da sociedade; estavam na sua margem, prestes a serem alijados para o abismo. O que saberia dizer um político, um professor, um historiador ou mesmo um filósofo sobre aquilo sem ter experimentado viver a situação? talvez, não a existência, mas a convivência com os desabrigados causasse muito incômodo a estas pessoas. Se fossem forçados a viver neste meio, é certo que estariam desconfortáveis. Porque a pobreza e a miséria alheia causam repulsa. "Se eles existem, que seja bem longe de mim". Por outro lado, se todos os desbrigados fossem milionários e gastassem seus dinheiros de forma extravagante, também isso causaria incômodo, pois "não é justo. tanta gente passando fome e...". Mas e se pertencessem todos à mesma classe social? à classe média? também isso causaria incômodo? é provável que sim, pois o ser humano comum vive incomodado com os outros, n'importe qui. Só os mendigos parecem não se incomodar com nada, nem com ninguém. 
De repente, veio uma angústia. Queria sair dali, voltar para casa. Onde estaria Filipo? teria ela o perdido para sempre? teria ele sido devorado pelos mendigos, ou talvez ´sido vítima daquele inesperado assalto matinal na loja ao lado?
Exatamente às oito horas, tocam os sinos da igreja.
Bléim
Bléim
Bléim
Cada batida do bronze soa como um presságio. As portas dos estabelecimentos se abrem. Leonor entra num banco para fugir dos mendigos e tenta telefonar para seu marido, mas ninguém atende.
Bléim
Bléim
Bléim
Ela sai do banco, correndo e desesperada. Entre os mendigos, entre os espíritos que andavam em horda pela rua, entre os mortos e os semi-mortos, ela encontra a vida. Filipo aparece, vem ao seu encontro. Nunca antes sentira um alívio tão grande.

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