terça-feira, 5 de agosto de 2014

A Mosca no Café



O relógio é carrasco: ela o fita com sofrimento, pedindo um alívio, um descanso, um perdão, pelo menos naquele dia. Ele não cede, jamais. Conformada, ela olha para a vida lá fora, a mesma coisa; olha para a tela na sua frente, tenta se distrair, ou melhor, se preocupar com algum assunto, e nada. Tudo o que deseja é ir embora. A imensa parede de vidro fumê, que possibilitava uma ampla visão do lado exterior (embora quem estivesse de fora nada podia ver do lado de dentro) da rua e dos carros que por ela passavam, era uma faca de dois gumes: se por um lado era um escape visual que a levava a lugares longíquos, por outro aquela contemplação monótona alimentava ainda mais a preguiça. O vai-e-vem dos veículos, uma sincronia repetitiva, fazia o ar daquelas vias se movimentar ainda mais, batendo nas folhas das mangueiras e palmeiras. O farfalhar das árvores dava a impressão de uma longa e sensual tarde de verão campestre. Olha novamente para seu carrasco: tinha corrido apenas um minuto. Alguém entra na sala: a colega de trabalho. Logo depois chega outra, outra e mais outra. O dia começou, o ambiente se movimenta. O silêncio disse Adeus. Teve uma ideia: a ideia de fazer café. Isso, nossa, como se empolgava com esse instante do dia. O instante em que se distraía com a esperança de que tudo iria mudar. Sim, estaria ocupada fazendo o café para as pessoas, colocaria o pó e a água na cafeteira, apertaria o botão e esperaria até o cheiro subir e o líquido negro descer. Então, distribuiria de forma igualitária esta limitada porção de café em pequeninas canecas que mais pareciam xícaras, e levaria gentilmente a cada uma de suas colegas. No final, ela mesma sentaria em sua mesa com aquela poção mágica de cafeína. Na esperança de despertar. Pensava nos operários das fábricas inglesas no século 19. Chegavam a trabalhar quinze, dezesseis horas por dia. Seria isso possível? Até mulheres e crianças eram submetidos a esse tipo de desgaste físico. Para evitar a vontade de dormir, consumiam litros de café. Logo após a Revolução Industrial, a exportação de café se tornou um negócio muito lucrativo, e o Brasil chegava a ser um dos maiores produtores e exportadores do produto. Iniciava-se a era da monocultura cafeeira. Tudo o que acontecia na economia brasileira girava em torno do café. E tudo, é claro, direcionado para a exportação. Dinheiro público era gasto na compra de estoque, para que seu preço se elevasse no mercado internacional. Seus próprios governantes faziam parte da elite cafeeira. Ah, o negrinho! Como cheira bem. Enquanto o consumo de café se difundia pelo mundo afora, os operários ingleses, personagens das histórias de Karl Marx e Charles Dickens, não dormiam; desmaiavam. O café era a droga dos trabalhadores e o combustível da produção industrial. Depois, pensava na Sibéria. Naquela prisão para onde iam os criminosos, infratores da lei, e mais tarde os presos políticos. As gulags. Eram submetidos a trabalhos forçados, o dia todo, todos os dias, passando frio, fome, e significativas privações. A situação deles era bem pior do que a dos operários ingleses, e a destes, era bem pior do que a sua. Logo, deveria estar contente. Pensava, afinal, que a vida não era tão dura quanto parecia. Apesar dessa constatação, sentia sua coluna doer como se tivesse sido submetida a dez dias de trabalho forçado. Não dormira bem naquela noite, nem na noite passada e tampouco nas anteriores. Gostava de se entregar a devaneios. Sempre o fazia de olhos bem abertos, para não cair na tentação de apagar de vez. Na sua imaginação, havia um quarto enorme; nem claro, nem escuro, mas com a penumbra provocada por uma cortina que tenta, sem sucesso, evitar a entrada dos raios de sol. É uma tarde de verão, ou talvez uma linda manhã, e no quarto se vê um tom rosa-aurora. Uma cama grande, de casal, com colchão macio, alto e espesso. Os lençóis brancos, 500 fios, e os travesseiros de pena de ganso enfiados em fronhas do mesmo conjunto dos lençóis. O clima era o mais agradável possível, nem quente, nem frio; nem seco, nem úmido. O tempo parecia não passar ali; o relógio era um velho amigo de infância, que a guardava e a vigiava enquanto ela repousava seu corpo e descansava a mente, alheia a qualquer ruído ou problema vindo de fora. Era dia, sim. Todos estavam acordados, corriam como loucos de um lado para outro, como se suas vidas dependessem daquilo. Enquanto isso, ela fechava os olhos tranquilamente, e experimentava o silêncio, a calma e a paz de uma noite bem dormida. O telefone toca, é para ela. Você precisa entregar um relatório até o meio-dia. Não tinha problema, ela podia fazer. Não se preocupava com o trabalho. Seu cansaço não era mental, tampouco físico. Podia passar o dia inteiro fazendo planilhas, escrevendo e entregando documentos de andar em andar, contanto que não precisasse falar com ninguém. Ter que abrir um sorriso, fingir que não estava cansada, rir das mesmas piadas e ouvir as mesmas lamúrias de todos os dias: eis o seu calvário. Era preguiça social! Toda a cafeína do mundo não era suficiente para o despertar de um interesse social. Ela sente as pálpebras caírem. Opa! Alguém comenta sobre algum famoso e pede sua opinião. Ela só consegue pensar nos operários ingleses do século 19. Depois do almoço, ouve o canto dos pássaros naquela rua residencial, deserta, calada. Tinha sorte de ainda poder ouvir o canto dos pássaros, pois aquele som lhe dava energia. "Aqui, sinto que há vida." Logo depois, o sono voltava. Pensava na Mosca da Sonolência, um pequeno inseto oriundo de países tropicais, muito comum em Salvador, Bahia. Este animal era muito nocivo para as pessoas, pois ao picar a vítima, transmitia-lhe um protozoário causador da Doença da Preguiça, que fazia a pessoa perder a agilidade e o entusiasmo para o trabalho. A Mosca Tze Tze. Era a mosca do seu café.

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